O PRAZER DA LEITURA
Rubem Alves
Alfabetizar é ensinar a ler. A palavra alfabetizar vem de “alfabeto“.
“Alfabeto“ é o conjunto das letras de uma língua, colocadas numa certa ordem.
É a mesma coisa que “abecedário“. A palavra “alfabeto“ é formada com as duas
primeiras letras do alfabeto grego: “alfa“ e “beta“. E “abecedário“, com a
junção das quatro primeiras letras do nosso alfabeto: “a“, “b“, “c“ e “d“.
Assim sendo, pensei a possibilidade engraçada de que “abecedarizar“, palavra
inexistente, pudesse ser sinônima de “alfabetizar“...
“Alfabetizar“, palavra aparentemente
inocente, contém uma teoria de como se aprende a ler. Aprende-se a ler
aprendendo-se as letras do alfabeto. Primeiro as letras. Depois, juntando-se
as letras, as sílabas. Depois, juntando-se as sílabas, aparecem as palavras...
E assim era. Lembro-me da criançada
repetindo em coro, sob a regência da professora: “be a ba; be e be; be i bi;
be o bo; be u bu“... Estou olhando para um cartão postal, miniatura de um dos
cartazes que antigamente se usavam como tema de redação: uma menina cacheada,
deitada de bruços sobre um divã, queixo apoiado na mão, tendo à sua frente um
livro aberto onde se vê “fa“, “fe“, “fi“, “fo“, “fu“... (Centro de Referência
do Professor, Centro de Memória, Praça da Liberdade, Belo Horizonte, MG.)
Se é assim que se ensina a ler,
ensinando as letras, imagino que o ensino da música deveria se chamar
“dorremizar“: aprender o dó, o ré, o mi... Juntam-se as notas e a música
aparece! Posso imaginar, então, uma aula de iniciação musical em que os
alunos ficassem repetindo as notas, sob a regência da professora, na
esperança de que, da repetição das notas, a música aparecesse...
Todo mundo sabe que não é assim que
se ensina música. A mãe pega o nenezinho e o embala, cantando uma canção de
ninar. E o nenezinho entende a canção. O que o nenezinho ouve é a música, e
não cada nota, separadamente! E a evidência da sua compreensão está no fato
de que ele se tranquiliza e dorme – mesmo nada sabendo sobre notas! Eu
aprendi a gostar de música clássica muito antes de saber as notas: minha mãe
as tocava ao piano e elas ficaram gravadas na minha cabeça. Somente depois,
já fascinado pela música, fui aprender as notas – porque queria tocar piano.
A aprendizagem da música começa como percepção de uma totalidade – e nunca com
o conhecimento das partes.
Isso é verdadeiro também sobre
aprender a ler. Tudo começa quando a criança fica fascinada com as coisas
maravilhosas que moram dentro do livro. Não são as letras, as sílabas e as
palavras que fascinam. É a estória. A aprendizagem da leitura começa antes da
aprendizagem das letras: quando alguém lê e a criança escuta com prazer.
“Erotizada“ – sim, erotizada! – pelas delícias da leitura ouvida, a criança
se volta para aqueles sinais misteriosos chamados letras. Deseja decifrá-los,
compreendê-los – porque eles são a chave que abre o mundo das delícias que
moram no livro! Deseja autonomia: ser capaz de chegar ao prazer do texto sem
precisar da mediação da pessoa que o está lendo.
No primeiro momento as delícias do
texto se encontram na fala do professor. Usando uma sugestão de Melanie
Klein, o professor, no ato de ler para os seus alunos, é o “seio bom“, o
mediador que liga o aluno ao prazer do texto. Confesso nunca ter tido prazer
algum em aulas de gramática ou de análise sintática. Não foi nelas que
aprendi as delícias da literatura. Mas me lembro com alegria das aulas de
leitura. Na verdade, não eram aulas. Eram concertos. A professor lia,
interpretava o texto, e nós ouvíamos extasiados. Ninguém falava. Antes de ler
Monteiro Lobato, eu o ouvi. E o bom era que não havia provas sobre aquelas
aulas. Era prazer puro. Existe uma incompatibilidade total entre a
experiência prazerosa de leitura – experiência vagabunda! – e a experiência
de ler a fim de responder questionários de interpretação e compreensão. Era
sempre uma tristeza quando a professora fechava o livro...
Vejo, assim, a cena original: a mãe
ou o pai, livro aberto, lendo para o filho... Essa experiência é o aperitivo
que ficará para sempre guardado na memória afetiva da criança. Na ausência da
mãe ou do pai a criança olhará para o livro com desejo e inveja. Desejo,
porque ela quer experimentar as delícias que estão contidas nas palavras. E
inveja, porque ela gostaria de ter o saber do pai e da mãe: eles são aqueles
que têm a chave que abre as portas daquele mundo maravilhoso! Roland Barthes
faz uso de uma linda metáfora poética para descrever o que ele desejava
fazer, como professor: maternagem: continuar a fazer aquilo que a mãe faz. É
isso mesmo: na escola, o professor deverá continuar o processo de leitura
afetuosa. Ele lê: a criança ouve, extasiada! Seduzida, ela pedirá: “Por
favor, me ensine! Eu quero poder entrar no livro por conta própria...“
Toda aprendizagem começa com um
pedido. Se não houver o pedido, a aprendizagem não acontecerá. Há aquele
velho ditado: “É fácil levar a égua até o meio do ribeirão. O difícil é
convencer a égua a beber“. Traduzido pela Adélia Prado: “Não quero faca nem
queijo. Quero é fome“. Metáfora para o professor: cozinheiro, Babette, que
serve o aperitivo para que a criança tenha fome e deseje comer o texto...
Onde se encontra o prazer do texto?
Onde se encontra o seu poder de seduzir? Tive a resposta para essa questão acidentalmente,
sem que a tivesse procurado. Ele me disse que havia lido um lindo poema de
Fernando Pessoa, e citou a primeira frase. Fiquei feliz porque eu também
amava aquele poema. Aí ele começou a lê-lo. Estremeci. O poema – aquele poema
que eu amava – estava horrível na sua leitura. As palavras que ele lia eram
as palavras certas. Mas alguma coisa estava errada! A música estava errada!
Todo texto tem dois elementos: as palavras, com o seu significado. E a
música... Percebi, então, que todo texto literário se assemelha à música. Uma
sonata de Mozart, por exemplo. A sua “letra“ está gravada no papel: as notas.
Mas assim, escrita no papel, a sonata não existe como experiência estética.
Está morta. É preciso que um intérprete dê vida às notas mortas. Martha Argerich,
pianista suprema (sua interpretação do concerto n. 3 de Rachmaninoff me
convenceu da superioridade das mulheres...) as toca: seus dedos deslizam
leves, rápidos, vigorosos, vagarosos, suaves, nenhum deslize, nenhum
tropeção: estamos possuídos pela beleza. A mesma partitura, as mesmas notas,
nas mãos de um pianeiro: o toque é duro, sem leveza, tropeções, hesitações,
esbarros, erros: é o horror, o desejo que o fim chegue logo.
Todo texto literário é uma partitura
musical. As palavras são as notas. Se aquele que lê é um artista, se ele
domina a técnica, se ele surfa sobre as palavras, se ele está possuído pelo
texto – a beleza acontece. E o texto se apossa do corpo de quem ouve. Mas se
aquele que lê não domina a técnica, se ele luta com as palavras, se ele não
desliza sobre elas – a leitura não produz prazer: queremos que ela termine
logo. Assim, quem ensina a ler, isto é, aquele que lê para que seus alunos
tenham prazer no texto, tem de ser um artista. Só deveria ler aquele que está
possuído pelo texto que lê. Por isso eu acho que deveria ser estabelecida em
nossas escolas a prática de “concertos de leitura“. Se há concertos de música
erudita, jazz e MPB – por que não concertos de leitura? Ouvindo, os alunos
experimentarão os prazeres do ler. E acontecerá com a leitura o mesmo que
acontece com a música: depois de ser picado pela sua beleza é impossível
esquecer. Leitura é droga perigosa: vicia... Se os jovens não gostam de ler,
a culpa não é deles. Foram forçados a aprender tantas coisas sobre os textos
- gramática, usos da partícula “se“, dígrafos, encontros consonantais,
análise sintática –que não houve tempo para serem iniciados na única coisa
que importa: a beleza musical do texto literário: foi-lhes ensinada a
anatomia morta do texto e não a sua erótica viva. Ler é fazer amor com as
palavras. E essa transa literária se inicia antes que as crianças saibam os
nomes das letras. Sem saber ler elas já são sensíveis à beleza. E a missão do
professor? Mestre do kama-sutra da leitura...
1. “Analfabeta não é a pessoa que não
sabe ler. É a pessoa que, sabendo ler, não gosta de ler.“ (Quem foi que disse
isso? Acho que foi o Mário Quintana).
2. A menininha de 9 anos me explicou
como as crianças na sua escola aprendiam a ler: “Aqui na Escola da Ponte não
aprendemos letras e silabas. Só aprendemos totalidades...“
3. Os compositores colocam em suas
partituras indicações para orientar o intérprete: lento, presto, adagio,
alegretto, forte, piano, ralentando. Os escritores deveriam fazer o mesmo
com seus textos. Há textos que devem ser lidos lentamente, expressivamente,
tristemente. Outros que exigem leveza, rapidez, riso. O leitor experiente não
precisa dessas indicações. Mas elas poderiam ajudar os principiantes.
4. “Mais valem dois marimbondos voando
que um na mão“ (Almanak do Aluá).
5. Graciliano Ramos relata que,
quando menino, na escola lhe ensinaram um ditado: “Fale pouco e bem e
ter-te-ão por alguém“. Ele repetia o ditado mas ficava com uma dúvida: “Quem
será esse ‘Tertião’?“
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